“…a writer will be
interested in what we don’t understand rather than in what we do. (…) He will
be interested in character who are forced out to meet evil and grace and who
act on a trust beyond themselves.” (Flannery
O’Connor: 1960)
O conto de Flannery
O’Connor, “The Life You Save May Be Your Own” apresenta ao leitor um mundo de
valores em conflito. O velho e o novo opõem-se nas personagens “the old woman” e Mr.Shiftlet (2204), na sedentarização e conservadorismo que a casa
e a quinta representam versus o carro e a mobilidade de Mr.Shiftlet (que é identificado desde logo pela velha mulher como “a tramp and no one to be afraid of” -
idem).
No
diálogo que mantém, na sua chegada à quinta, com a senhora Crater (o nome da personagem aponta para o vazio da vivência rural
em extinção), Shiftlet é muito crítico da sociedade moderna: “Nothing is like it used to be, lady, he
said. The
world is almost rotten”, “nowadays, people’ll do anything anyways”
(2205). No final do conto esta opinião é reiterada: “Mr. Shiftlet felt that the rottenness of the world was about to engulf
him” (2211). A crítica
à decadência da sociedade moderna, que no início parece anunciar Mr.Shiftlet como uma pessoa que preza
valores tradicionais, é particularmente irónica porque Mr. Shiftlet, que tem interesses materiais e comete actos
moralmente condenáveis, não se inclui a si mesmo nessa imagem negativa do mundo
contemporâneo.
Shiftlet descreve-se como um homem dotado
de uma inteligência moral, mas o seu comportamento pode ser classificado, à luz
dos valores cristãos, como imoral. Esta duplicidade é enunciada no texto
através do nome da personagem central – os paralelismos entre Shiftlet, shift (mudança ou movimento de lugar ou
de opinião) e shifty (desonesto,
falso, matreiro) é incontornável – e nos diálogos com a velha mulher. Quando
interrogado sobre o seu nome e proveniência, Shiftlet protela primeiro uma
resposta e depois levanta ele mesmo a possibilidade de poder estar a mentir. Observa-se
um contraste entre o que se revela de Shiftlet no discurso directo e no que nos
é dito na narrativa – há uma dissociação entre showing e telling. Se a
chegada de Shiftlet – banhado pela luz do sol poente - parece auspiciosa, um
salvador para a velha mulher, sinais ameaçadores fazem prever um desfecho
negativo. Já vimos como o nome de Shiftlet aponta para uma duplicidade de
carácter, a sua deficiência física, a mutilação, direciona o leitor para uma
falha moral. Antes mesmo de falar, a imagem de Shiftlet é a de uma cruz torta (“crooked cross”, 2204).
Ainda relacionado com a moralidade
religiosa, há a considerar a presença de símbolos tais como os pássaros – a
palavra que Shiftlet ensina a Lucynell e que esta repete “Burrttddt ddbirrrttdt” (2207) – que pode ser vista como representação
do Espírito Santo; a figueira e a cobra que remetem para o episódio do pecado
original no texto bíblico e a imagem do coração arrancado do peito e seguro por
uma mão [“... taken a knife and cut the
human heart (...) out of a man’s chest and
held it in his hand” - 2205] pode ser equiparada ao Sagrado Coração de Maria.
Podemos também considerar a filha como uma representação da vítima sacrificada,
tal como Cristo – visto que Lucynell não tem qualquer posição nas decisões da
sua vida e o seu destino é traçado por outros; e Cristo não conseguiu evitar o
destino da sua morte, que foi traçado pelos homens.
Um dos símbolos significantes para a
compreensão de sentidos para que o texto nos indica é o carro, objecto de desejo
e atenção de Shiftlet desde o início. O carro representa a ânsia de liberdade e
de constante mobilidade e que é patente na enumeração das várias profissões que
teve ao longo da vida “He had been a
gospel singer, a foreman on the railroad, an assistant in an undertaking
parlor, and he come over the radio for three months with Uncle Roy and his Red
Creek Wrangles. He said he had fought and bled in the Arm Service of
his country (...)” (2206).
Uma vez atingido o seu objectivo (a posse
do carro), conseguido à custa de uma negociação que garantia o seu casamento
com a filha da velha mulher, Shiftlet apressa-se a abandonar a Lucynell num
café banal, para poder, então, retomar a sua viagem. Ao passar por placas na
estrada com a “Drive Carefully. The Life
You Save May Be Your Own” (2210), inconscientemente, ele analisa-a como
sendo um aviso de que boas acções são instrumento da salvação individual. Isto
é, claramente, um alerta para a má acção que acabara de praticar. Assim,
Shiftlet, numa tentativa de se redimir, oferece boleia a um rapaz à beira da
estrada. Esse encontro resulta em confronto - o rapaz rejeita violentamente os
conselhos de Shiftlet e abandona o carro. O título, transposto dos avisos à
circulação, permite a leitura do texto numa perspectiva moral. Embora este texto
esteja aberto a múltiplas interpretações, a decisão de Shiftlet de continuar o
seu caminho em direcção a Mobile
(étimo também presente em “Automobile”) parece colocar fora do alcance da
personagem, pela segunda vez, a possibilidade de redenção. Shiftlet segue pela
estrada, perseguido pelos elementos da natureza.
(Photo in http://akayamahata.wordpress.com/2012/11/21/the-life-you-save-may-be-your-own-group-blog-by-de-leon-rafael-rapadas-rivera-yamahata/)
Obras Citadas
O’CONNOR, FLANNERY. (1960). “Some Aspects of the Grotesque in Southern
Fiction.” http://www.en.utexas.edu/amlit/amlitprivate/scans/grotesque.html.
Web.
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