Começando
por admitir que temos completa consciência de que estamos a defender um filme
cuja qualidade e mérito como adaptação sofre significativamente devido a
algumas divergências em relação ao livro, fazemos questão de argumentar que Fahrenheit 451 de François Truffaut fez
os possíveis dentro das limitações do cinema na década de 60 para transpôr e,
por vezes condensar, 159 páginas que cobrem uma míriade de tópicos e conceitos
sócio-filosóficos em quase duas horas de filme.
Concordamos com a oposição na questões da
evaporação da essência do Capitão Beatty, uma das personagens mais relevantes
do livro, das diferenças da dinâmica entre Montag e a sua mulher e até mesmo do
extremismo do filme em equiparar os bombeiros com os nazis sem qualquer
subtileza. Constatando que falamos de um filme que nasce da adaptação de um dos
melhores romances da história da literatura americana, que levou Bradbury ao
estrelato, dentro do género, temos de reconhecer que a transformação da obra
pode fazê-la perder conteúdo literário. Contudo, desvalorizamos esta perda por
considerarmos que, mesmo tratando-se de uma mesma obra em formato diferente, o
filme, com todas as limitações de tempo, económicas ou de produção que pudesse
ter, é uma boa adaptação do texto literária e captura o centro das questões no
tempo, mantendo-o actual, não sendo de todo necessário ler o livro para
entender esta peça cinematográfica como uma obra-prima de Truffaut. Insistimos
com o ponto inegável de que o filme, apesar de todas as pequenas alterações
efectuadas mantém-se fiel à obra original a um grau em que as ideias e temas
principais continuam presentes.
Sublinhamos
que as discordâncias entre o hipo e o hipertexto não são sempre os melhores
medidores da qualidade de uma adaptação, muito menos os únicos. Voltamos a
referir os múltiplos exemplos de adaptações de obras literárias para filmes (Bladerunner; Wuthering Heights), de
obras literárias paraséries televisivas (Man
in the High Castle), de obras literárias para videojogos (World of Warcraft), e até de bandas
desenhadas para filmes (Watchmen),
onde a adaptação, com todos os desvios da história original que comporta,
continua a ser reputada como uma peça de alto valor.
Afirmamos,
com certeza, que a estética e a banda sonora (Bernard Hermann) são, também,
duas chaves importantes nesta construção, que contribuem para um romance que se
prende a uma sequência de pensamentos dramáticos debruçados numa sociedade
quase pós-apocalíptica, onde assenta na perfeição a inspiração que Truffaut vai
buscar ao mestre do suspense: Hitchcock. Alguns dos exemplos que apontam para a
importância destes detalhes serão a utilização do vermelho (associado ao fogo,
símbolo de purificação e/ou fonte da construção do conhecimento da humanidade)
e do cinzento (simbolo de estabilidade, depressão, rigidez ou falta de emoção),
ou mesmo a narração dos créditos iniciais, enquanto são filmadas antenas de televisão
caseiras, sugerindo à partida a ideia que contempla todo o filme: leitura
proibida.
E, concluindo, voltamos a realçar os seguintes aspectos do filme Fahrenheit
451:
- Ao contrário de Spielberg em Minority
Report, Truffaut dedicou as quase 2 horas de filme a debruçar-se sobre os
meandros do livro; uma abordagem quase científica que não despojou o filme da
sua capacidade no campo do entretenimento.
- As técnicas que tornam o
filme uma obra prima de nouvelle vague,
através das quais esta adaptação de Truffaut se destaca especialmente pelo
trabalho ao nível da cor, do movimento, e do som permitem ao filme equiparar-se
ao livro como uma grande obra repleta de referências e simbolismos, e
homenageiam apropriadamente a obra cujas palavras o filme traduziu para imagens
em movimento.
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