No
letra da canção Os Pós Modernos, de
Rui Reininho, é clara a presença do surrealismo, quer na forma quer no
conteúdo, que são interdependentes. Na forma, é evidente o uso errático da
pontuação e da irregularidade da métrica e dos versos propriamente ditos. Já o
conteúdo, superficialmente, na primeira estrofe, parece cingir-se à mistura e
enumeração de produtos relativamente modernos à época ("Compact D"),
ou de outra forma tidos como impactantes ao ponto de não parecerem obsoletos
mesmo tendo sido passados vários anos desde a sua génese (DDT, Kleenex,
"Twist Again", disco sound).
A supracitada primeira estrofe revela-se
caótica, misturando vários tipos de conceitos (veneno, alimentos, soluções
arquitectónicas, canções). Este tipo de composição revela uma pretensão de
provocar no leitor/ouvinte uma sensação de dissociação e invasão, sendo a
confusão o mote para o protesto: o sujeito lírico está descontente com a
inovação e, principalmente, a publicidade desta, por serem desenfreadas
("(...)discussão?" aparece sugerindo um reforço na complexidade
arbitrária de todos estes novos conceitos, e "(...) compre aqui?"
alude a essa mesma publicidade).
Por outro lado, na segunda estrofe, o caos
antes evocado dá lugar a uma exposição de ideias claras mas complexas e
metafóricas. No primeiro verso, o conceito de maternidade pode ser visto como
uma metáfora para a criação, e o autor confronta esse conceito com o de
humanidade, através da palavra "homem" – um homem que é Mãe independentemente
do seu género (será relevante tomar nota do facto de o sujeito lírico apontar
isto como sendo desejável, rejeitando o machismo e a misoginia frequentemente
demonstrados no Portugal dos anos 80). Continuando com a ideia de confronto, é
em 1986 normal ser-se o melhor "para os novos pobres deste colégio
interno". O uso de "novos pobres" como inversão de "novos
ricos" remete para uma noção de pobreza de espírito, literalmente, sem
relação com a capacidade monetária necessária para frequentar o colégio, que é
a sociedade à luz de quem testemunhou as referidas inovações. Seguem-se duas
reflexões mais pessoais, com talvez uma justificação ou apologia do sujeito
lírico em relação aos medos que até aí expôs - possivelmente teme a
globalização desmedida porque é artista, “naturalmente” (auto-ironia) - e a
declaração de que a embriaguez (não só de substâncias mas de consumismo) é a
desistência.
A isto segue-se um apontamento interessante,
que remete novamente para a justificação, mas desta vez num contra-argumento
dos possíveis detractores do poeta: “E dantes as máquinas estavam sempre a
avariar”.
A última estrofe, por fim, e na mesma
senda, apresenta uma linguagem polida e um exagero das qualidades dos "pós
modernos" (remetendo ao tipo de linguagem e retórica usadas na publicidade)
- "nada complicados". Segue-se uma mudança no tom do conteúdo, que
devido à continuação da forma, não é de percepção imediata – os pós modernos
"agarram a angústia e fazem dela uma (...) indústria". Esta mudança
torna esses versos numa crítica explícita, em contraste com o resto do poema,
no qual há sobretudo sátira, ironia e o surrealismo como disfarce pouco
conseguido, fácil de eliminar por quem o queira fazer. Os dois últimos versos
marcam a etapa final da gradação negativa que acontece ao longo do texto - são
explicitamente negativos (“nada”,
“nunca”).
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