Wednesday, 2 March 2016

Análise de Os Pós Modernos de Rui Reininho (por Miguel Mira)


No letra da canção Os Pós Modernos, de Rui Reininho, é clara a presença do surrealismo, quer na forma quer no conteúdo, que são interdependentes. Na forma, é evidente o uso errático da pontuação e da irregularidade da métrica e dos versos propriamente ditos. Já o conteúdo, superficialmente, na primeira estrofe, parece cingir-se à mistura e enumeração de produtos relativamente modernos à época ("Compact D"), ou de outra forma tidos como impactantes ao ponto de não parecerem obsoletos mesmo tendo sido passados vários anos desde a sua génese (DDT, Kleenex, "Twist Again", disco sound).
    A supracitada primeira estrofe revela-se caótica, misturando vários tipos de conceitos (veneno, alimentos, soluções arquitectónicas, canções). Este tipo de composição revela uma pretensão de provocar no leitor/ouvinte uma sensação de dissociação e invasão, sendo a confusão o mote para o protesto: o sujeito lírico está descontente com a inovação e, principalmente, a publicidade desta, por serem desenfreadas ("(...)discussão?" aparece sugerindo um reforço na complexidade arbitrária de todos estes novos conceitos, e "(...) compre aqui?" alude a essa mesma publicidade).
    Por outro lado, na segunda estrofe, o caos antes evocado dá lugar a uma exposição de ideias claras mas complexas e metafóricas. No primeiro verso, o conceito de maternidade pode ser visto como uma metáfora para a criação, e o autor confronta esse conceito com o de humanidade, através da palavra "homem" – um homem que é Mãe independentemente do seu género (será relevante tomar nota do facto de o sujeito lírico apontar isto como sendo desejável, rejeitando o machismo e a misoginia frequentemente demonstrados no Portugal dos anos 80). Continuando com a ideia de confronto, é em 1986 normal ser-se o melhor "para os novos pobres deste colégio interno". O uso de "novos pobres" como inversão de "novos ricos" remete para uma noção de pobreza de espírito, literalmente, sem relação com a capacidade monetária necessária para frequentar o colégio, que é a sociedade à luz de quem testemunhou as referidas inovações. Seguem-se duas reflexões mais pessoais, com talvez uma justificação ou apologia do sujeito lírico em relação aos medos que até aí expôs - possivelmente teme a globalização desmedida porque é artista, “naturalmente” (auto-ironia) - e a declaração de que a embriaguez (não só de substâncias mas de consumismo) é a desistência.
    A isto segue-se um apontamento interessante, que remete novamente para a justificação, mas desta vez num contra-argumento dos possíveis detractores do poeta: “E dantes as máquinas estavam sempre a avariar”.
    A última estrofe, por fim, e na mesma senda, apresenta uma linguagem polida e um exagero das qualidades dos "pós modernos" (remetendo ao tipo de linguagem e retórica usadas na publicidade) - "nada complicados". Segue-se uma mudança no tom do conteúdo, que devido à continuação da forma, não é de percepção imediata – os pós modernos "agarram a angústia e fazem dela uma (...) indústria". Esta mudança torna esses versos numa crítica explícita, em contraste com o resto do poema, no qual há sobretudo sátira, ironia e o surrealismo como disfarce pouco conseguido, fácil de eliminar por quem o queira fazer. Os dois últimos versos marcam a etapa final da gradação negativa que acontece ao longo do texto - são explicitamente negativos (“nada”, “nunca”).

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