Para criar um elo de ligação entre o ensaio de
Adrienne Rich, uma obra representante do pensamento feminista, da posição
enquanto mulher numa sociedade patriarcal feita através da experiência própria
da autora, e uma música da banda de punk feminino dos anos 90, Bikini Kill,
escolhemos a VII parte de um poema tardio da autora do ensaio, “Sources”, que fala de algo comum aos
outros dois pontos de análise: a relação entre pai e filha e o que esta
representa na maturação da mulher.
Começando
pela análise do poema não podemos deixar de reparar no título: “Sources” -
fontes, origens – que sugere imediatamente a busca do autoconhecimento, o
revisionismo/revisitação para chegar à origem do “self” mas também à origem do
sofrimento que compõe a mulher. O título é também concordante com um dos mais
importantes pontos do ensaio “When we
dead awaken”: o período da origem é antecedente ao de “awakening
consciousness” (pág.167, 7º parágrafo) e, portanto, é muito importante
conhecê-la para construir a nova identidade feminina.
A
nível formal, o poema afigura-se até mais com uma prosa poética de tom
confessional, quase como se fosse um discurso corrido e impulsivo. O uso de
deícticos e o jogo que é feito com estes transmite duas ideias principais: a
repetição de “I” contribui para transmitir a dimensão ultra pessoal do poema e
o uso do determinante “your” aponta para casos de posse, neste caso, que
representam a pressão esmagadora que o pai exercia sobre o sujeito
poético. Neste jogo de deícticos é
também interessante observar o uso gradual destes, ou seja, como a autora faz a
transição do pronome “I” para “She” e mais tarde para “They”, transição esta
que alude ao carácter universal desta experiência do sujeito poético.
O
poema, apesar de não recorrer a muitas figuras de estilo, tem um factor
temporal muito pesado: é um poema altamente situado no tempo de revisionismo
pelo qual o sujeito poético passou (“I saw”/ “For years”/ “Taught to study but
not to pray”/ “Taught to hold reading and writing sacred”.), este faz uma
passagem pelos tempos em que vivia com e para o seu pai e por todas as “lições”
que recebeu (O verbo “taught” ironicamente é depois usado também para a frase
“take what he taught her and use it against him”).
Encontram-se
também algumas metáforas como “castle of air” e “kingdom of fathers” (uma
representação do poder e da arrogância, em geral, do homem na sociedade). Já
quase no fim do poema a metáfora “womanly lens” sugere um período pós-awakening, um tempo que a mulher já é
plena e já tem uso pleno de todas as suas características. “Power” é um
substantivo que inicialmente é associado à facção masculina na vida do sujeito
poético mas que, no fim, é já usado para descrever a “womanly lens” (uma ideia
de inversão do poder).
A
estratégia a que procedemos para dividir o poema em duas partes (1ª parte até “always
be aliens”) pode também ser interpretada como uma representação do processo de
auto conhecimento necessário à mulher e do próprio movimento feminista. Vemos
na primeira parte uma recapitulação da experiência submissiva do sujeito
poético, a construção do que o seu pai representa, uma sinédoque para toda a
sociedade patriarcal e as dificuldades por que a mulher passa ao tentar
encontrar-se/orientar-se através da “voz” masculina, ao tentar corresponder às
expectativas masculinas que lhe impõem, é transmitida uma ideia de
masculinidade forçada (“The eldest daughter in a house with no son”). Foi a
partir da imagem do pai, a primeira figura e exemplo viril na vida de uma
mulher, que o sujeito poético e o sexo feminino em geral se apercebem da
situação em que vivem. Nesta primeira parte parece ser passada a noção do quão
doloroso é o processo de revisionismo, algo que a autora refere igualmente no
ensaio (“(…) it’s exhilarating to be alive in a time of awakening
consciousness; it can also be confusing, disorienting and painful.” – pág.167,
7º parágrafo).
Na
segunda parte do poema assiste-se a como que uma segunda fase de todo o
processo de “aquisição” da plenitude feminina. Aqui, o poema adquire a um ponto
extremo o seu tom confessional, referindo a morte do pai, que dá uma sensação
de que o sujeito poético está a conversar com a sua campa, pedindo desculpa mas
também perdoando. Assistimos à aceitação e ao reconhecimento, uma espécie de
“iluminação do género” (“Could name at last the principle you embodied”/ “(…)
there was na ideology at last which let me dispose of you(…)”/ “(…) that I can decipher your suffering and deny no
part of my own”.). Outra vez, é usada uma referência temporal,
“at last”, que indica um tempo de espera e de sofrimento mas também de
compensação. É também aqui neste período do poema que o sujeito poético assume
a sinédoque através do seu próprio processo de revisionismo (“as part of a
system”/ “I saw the power and the arrogance of the male as your true
watermark”).
Curiosamente,
o uso do ponto e vírgula (;) a meio da segunda parte introduz uma nova fase que
contrasta com a raiva e sofrimento pessoal, introduz o sofrimento do pai, um
sofrimento escondido, e introduz as possíveis causas deste (a ideia da herança
judaica, um “estigma” na sociedade americana, a ideia da deslocação e pouca
adaptação). Esta quebra insinua a maturidade da mulher (está talvez aqui um
pedido de desculpas implícito) quando esta se apercebe da raiva presente em si
mas também das suas causas reais, uma espécie de “anger management”, de que Rich
fala também no seu ensaio (“Both the victimization and the anger experienced by
women are real, and have real sources, everywhere in the environment, built
into society, language, the structures of thought (…). We can neither deny them, nor will we rest there.” –
pág. 177, 2ºparágrafo).
Podemos olhar para este poema como um
complemento artístico a inúmeros pontos do ensaio. É neste poema que
encontramos a realização da chamada “linguagem feminina”, algo a que Adrienne
Rich apela em “When we dead awaken”,
preenchida por pronomes, proveniente da experiência unicamente feminina, uma
linguagem contrária à “cool writing” masculina [“(…) is the way men of the
culture thought a writer should sound.” – pág. 169, 6ºparágrafo] também
apropriada por escritoras como Virginia Woolf e Jane Austen mas que, segundo
Rich, o que estas pretendiam dizer não era cumprido na totalidade por ainda
estar sob o signo da sociedade patriarcal e da dominação pelo sexo masculino.
Poeticamente, “Sources” é também a
realização do processo de revisitação e a tomada de consciência feita de forma
pacífica de que Rich fala. A passagem do registo pessoal para o geral é
verificada tanto no ensaio (Rich parte da sua própria experiência para servir
como exemplo) como no poema (recordemos a graduação pronominal que se dá ao
longo de todo o texto) e contêm exactamente a mesma mensagem: a libertação e
ascensão da Mulher são possíveis e comuns a qualquer uma. [«revision (…) is for women more than a chapter in
cultural history: it is an act of survival, self-knowledge is more than a
search for identity: it is part of our refusal of the self-destructiveness of
male dominated society. »].
“It is only, under a powerful, womanly lens, that I
can decipher your suffering and deny no part of my own.”
Na música da banda
Bikini Kill, “Daddy’s Li’l Girl”, a forma de revolta e recusa do modelo
masculino é feita de forma diferente. Apesar do tema ser o mesmo, o peso das
expectativas de um pai para com uma filha e a indulgência perante o sexo
feminino, o registo é muito mais agressivo. A letra é muito mais directa e violenta: “Daddy’s li’l
girl don’t wanna be his whore no more” ou “Didn’t know I’d have to lose myself
for Daddy’s touch”. Kathleen Hanna, vocalista, transforma a opressão
da figura feminina enquanto filha numa coisa extremamente violenta e sexual. A
estratégia passa muito mais por chamar à atenção e provocar em comparação com a
obra de Adrienne Rich, que se centrava nestas questões de uma forma mais
cerebral. Em “Daddy’s Li’l Girl” os sentimentos são transmitidos de uma forma
altamente emocional e descontrolada. Mas é aqui que entram as diferenças entre
a arte literária e musical. As Bikini Kill usam de propósito o Punk como forma
de alarmar a Mulher, ironicamente um genre
musical maioritariamente dominado por homens. O problema da figura paternal já
provinha de períodos passados, como se vê na poetisa que estudámos, daí a óbvia
associação temática. Mas a diferença que mais ressalta é a forma de transmissão:
o poema pretende dar relevância à linguagem feminina e a música faz passar a
mensagem usando um modelo mais masculino de linguagem (um equivalente exagerado
ao que Rich chama de “the misnaming and thwarting of her needs by a culture
controlled by males” pág. 169, 5ºparágrafo) não deixando, no entanto, de estar adaptado
à problemática feminina.
Esta ponte que
pretendemos fazer prova então que o carácter revolucionário e perdurante da
busca de soluções para a ascensão plena da Mulher (uma busca através de meios
que variam de acordo com a época e situação) pode ser transmitido por inúmeros
formatos de expressão artística. A mensagem poderá parecer mais ou menos
deformada, mais ou menos directa, mas o cerne ligado a esta procura incansável
mantém-se sempre: a mudança de paradigma e a construção de um sistema mais
igualitário.
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