Um intersecionismo entre os
E.U.A. dos beat e Lisboa no verão
1. No dia em que voltei
[1]a Lisboa
estavam lá todos: o Carlo, o Chad, a Marylou, o Big Ed Dunkel, Old Bull Lee.
Todos. Menos o Dean, que era o meu melhor amigo. Conheci o Dean pouco tempo
depois da minha namorada e eu nos termos separado. Eu acabara de recuperar de
uma fase grave de que não vou dar-me ao trabalho de falar a não ser que não
teve nada a ver com essa rutura extremamente deprimente e a minha sensação de
que tudo fracassava.
2. Lisboa rebentava
com o calor, com a humidade e com a festa. Com o aroma itinerante de sardinha,
que flutuava de terraço em terraço, com copos e garrafas de cerveja deitados,
jazendo na calçada nervosa. Lisboa rebentava, tinha-se desertificado. Só
sobrava a massa informe dos turistas. Estava-se, na realidade, em Alger.
3. Eu fui ter com o
Carlo à cave do número quatro da Praça da Alegria, pois ele estava muito triste
e queria ter o seu momento benzedrina comigo – todas as semana tínhamos um
momento benzedrina em que éramos totalmente sinceros um com o outro. Mal
sonhava ele que quem estava a morrer era eu, apesar da minha aparência apática,
por causa da minha aparência apática. O Carlo, marxista, sempre quisera fazer
amor comigo mas eu, que sou muito liberal, disse-lhe pago-te uma puta se
quiseres desde que não interfiras no belo intervalo que é o que eu sou do que
tu és, que é a nossa amizade, o intervalo. Eu também o amava. Faltava lá o
Dean, no entanto.
4. Juntos inicámos
o ritual, os sons do Hot Club penetravam as paredes finas e poeirentas da cave,
era aquela dupla que soprava hoje à noite um disorder at the border, Dexter e Wardell[2].
5. Carlo falou-me
de muita coisa mas eu só olhava para os olhos dele e via irrigações de sangue
neuróticas, existencialistas. Uma não-alma. Dos seus olhos vi-me e eu não era
louco, afinal de contas. Era só carne e osso, cheirava a cevada, o meu hálito
era nojento. Ou se calhar era a benzedrina.
6. Para afastar as
alucinações acendi um cigarro e enrosquei-me na ideia de que queria voltar às
Montanhas Rochosas[3]. Ou pelo menos
à Arrábida. Enfim, fazer vida de festa ou de monge, desde que se pudesse fumar.
[1]
Orig.”cheguei”
Este pastiche foi realizado após a primeira leitura que fiz de On the Road. Trata-se de um registo das
impressões mais fortes da leitura realizadas através do intersecionismo entre
os E.U.A. dos escritores da geração beat
e Lisboa no verão. Em consequência da utilização do processo pessoano teremos:
Ø digressões entre o universo do eu-narrador deste exercício e o do
narrador de On the Road e por vezes
do da vida do seu autor
Ø confusões e sobreposições, traindo qualquer possibilidade de uma espécie
de continuação ou interpretação da narrativa na qual se
baseia este exercício.
Baseia-se
especialmente nos capítulos 6-10 da parte 1, ou seja a estadia de Sal Paradise
em Denver.
As impressões que tentei
plasmar são aquelas que concernem [por parágrafo]:
1.
o incipit – as razões que levam Sal a
ir e voltar constantemente;
2.
o ambiente árido e vadio de Denver,
transposto para Lisboa no verão;
3.
as relações ambíguas e o sentido de camaradagem; o confronto do conservadorismo
de Sal / Kerouac com o libertinismo dos outros membros da geração beat; a dificuldade em expressar os
“reverent mad feelings” [preocupação essencialmente artística];
4.
o jazz e a sua peculiaridade no imaginário americano;
5.
uma aproximação ao existencialismo;
6.
a noção de beatífico.
Propus-me
a captar um fragmento estático entre o vir
e o ir recorrentes em On the Road – “no dia em que voltei”,
“queria voltar” [ir]. A repetição do verbo “voltar” sugere a ausência da
estrada no seu sentido concreto. Outra ausência flagrante é a de Dean Moriarty
/ Neal Cassady. Esta é sobretudo um recurso para o passo 3, explicado mais
abaixo.
Estilisticamente adotei por
vezes a parataxe (discurso direto livre no passo 3 ou “apesar da minha apatia,
por causa da minha apatia”), o anacoluto (idem) e a aliteração (“disorder at
the border, Dexter e Wallder”).
Segue-se então à
análise de cada parágrafo, ou passo, deste texto:
No primeiro parágrafo parafraseei o incipit de On the Road
numa tradução livre para situar o imaginário gerador da nova narrativa nos seus
novos tempos e espaços. A alteração de certos termos (“illness”, “fase”;
“wife”, “namorada”) estabelece as diferenças entre o eu-narrador e o
narrador-autor; introduz também o conceito de pastiche, não inteiramente fiel. No
segundo passo descrevi Lisboa no
verão. Tentei estabelecer um paralelismo entre Lisboa e a Denver de On the Road, ao criar um rasto de
elementos locais por onde as personagens pudessem ter passado (o rasto da sardinha
[“ice cream and apple pie”], a cerveja); ao recriar uma certa vadiagem (os copos e garrafas no chão) e
aridez (o calor, a desertificação); ao repor, mesmo, certos atributos
localizados na obra trabalhada (“a massa informe dos turistas” no texto escrito
corresponde a uma passagem [pp 46, Penguin] da viagem a Central City: “narrow
streets choke full of chichi tourists”). Saliento também o último período deste
parágrafo – “Estava-se, na realidade, em Alger”. Alger aparece como a Alger d’O
Estrangeiro de Camus (esta relação será estabelecida mais abaixo.). Algiers
é também o nome da localidade pantanosa do Louisiana onde vivia Old Bull Lee
[Borroughs] com a sua mulher, e Ginsberg, passou pelo Norte de África (como se
pode inferir das suas cartas). Esta coincidência pode-nos servir de portal para
o parágrafo seguinte, no qual Carlo Marx é introduzido.
No terceiro passo, o trio das personagens principais, “the old
threesome of Carlo, Dean and Sal” [pp. 29, Penguin], é posto em causa pela
referida ausência do segundo – é uma variante do
episódio em que
os três se reúnem na cave de Carlo e Sal assiste à discussão entre os dois
acesa pela benzedrina [pp. 43-45, Penguin]. Trata-se de um processo de
desdobramento de personagens. A ausência de Dean resulta na canalização
do desejo de confidência e do desejo sexual em direção ao narrador
autodiegético. A tensão provocada evidencia o confronto do conservadorismo de Sal / Kerouac com o resto das personagens. Este
confronto de ideologias, aliás modos de vida, é, a meu ver, um dos aspetos mais
importantes da obra de Kerouac e merece ser destacado porque é uma das grandes
linhas de força de On the Road.
Outro efeito que pretendia concretizar com a ausência de Dean era a
intensificação da sua importância para o desenvolvimento da narrativa e a sua
interpretação. O silêncio desta personagem dá a impressão de que, “faltando lá
o Dean”, algo não se concretiza. É ainda nesse sentido que a sua ausência
acentua o sentido de camaradagem, também este um tópico relevante em On the Road. A aparente contradição
“apesar da minha apatia, por causa da minha apatia” justifica-se pela conotação
aqui explorada da palavra, sendo que a aparência apática por um lado não
transparece a ansiedade (“quem estava a morrer era eu”) e, por outro, a apatia
mental é geradora de incapacidade de sentir e, consequentemente, da inércia
produtiva. A respeito da incapacidade de sentir, esta é bastante evidente ao
longo do romance de Kerouac ao reconhecer em Dean o aldrabão (“conman”) e ainda
assim ver nele “the secret that we're all busting to find out” [parte três]. A
respeito (do sentimento de) inércia produtiva, Ann Charters nota no prefácio à
edição da Penguin que Kerouac, após escrever a primeira parte de On the Road (e, portanto, após
ter vivido essas mesmas experiências captadas) sentia uma “emptiness and even falseness”.
O quarto parágrafo é onde mais se destaca a parataxe e portanto é a
passagem que estilisticamente mais se identifica com o Kerouac de On the Road. Para além da sua função
estilística, tem uma função sensitiva (auditiva) e de contextualização cultural.
O topos do jazz é das impressões mais fortes que se pode receber delas.
Recorri aos nomes citados por Kerouac na sua obra – entre outros, Dexter Gordon
e Wallder Gray. Por serem tão característicos de um tempo e de um espaço (sul,
Memphis), ao contrário de nomes como Miles Davis ou Charlie Parker (que a tanto
mais se podem associar), seria a opção mais acertada. A passagem no fim do
parágrafo que contém a aliteração com ritmos de bebop (“disorder at the border, Dexter e Wallder”) confere a
musicalidade sugerida e alude à confusão até agora gerada pela fusão de
horizontes (Portugal / E.U.A., Sal / eu-narrador).
No quinto parágrafo são feitas associações problemáticas como
“irrigações de sangue […] existencialistas” ou “não-alma”. Atribuí portanto um carácter
existencialista ao universo de On the
Road, mais precisamente, no texto, a Carlo Marx (por extensão ao modo de
vida desta geração). Esse carácter existencialista é visível, julgo, numa das
citações mais simbólicas do romance de Kerouac, onde o narrador terá negado a
natureza humana – “I was just somebody
else, some stranger, and my whole life was a haunted life, the life of a ghost”.
[pp 15-16, Penguin] Isto aproxima-nos muito do pensamento de Sartre (L’Existencialisme
est un Humanisme). Negando a natureza humana põem-se várias hipóteses como
conduta na vida, tendo em conta que “estamos condenados a ser livres” (ibidem).
E, além disso, “a existência precede e governa a essência” (ibidem). Estas duas
ideias fulcrais do existencialismo querem dizer, de um modo simplista e muito
redutor, que as ações de um Homem talham o seu carácter – a liberdade e a
responsabilidade do Homem são uma realidade nesta corrente filosófica. Do meu
ponto de vista, é possível relacionar a história de Sal Paradise e a vida e
obra de Jack Kerouac com as ideias de Camus, segundo as quais “a fraternidade é
a única resposta ao absurdo” (camaradagem na obra). Tendo em conta que Camus
seguiu durante muito tempo princípios católicos, pelo menos em grande parte da
sua vida, e que terá o influenciado o seu pensamento filosófico, podemos estabelecer
a ponte com a noção de beatífico.
Esta é a noção que encontramos no sexto
parágrafo, alicerce e finalidade da experiência beat. Cristaliza-se na escolha toponímica da Arrábida – serra dos
monges, local de oração (al-rabit).
Finalmente, o verdadeiro dilema de Kerouac entre a vida com os amigos / boémia
/ móvel e a vida familiar / religiosa / estável, no fim deste exercício de pastiche, encontra uma só condição: a condição de se poder fumar.
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