Monday 8 September 2014

Pastiche de On the Road e sua memória descritiva (trabalho de Pedro Franco)


Um intersecionismo entre os E.U.A. dos beat e Lisboa no verão
                  1. No dia em que voltei [1]a Lisboa estavam lá todos: o Carlo, o Chad, a Marylou, o Big Ed Dunkel, Old Bull Lee. Todos. Menos o Dean, que era o meu melhor amigo. Conheci o Dean pouco tempo depois da minha namorada e eu nos termos separado. Eu acabara de recuperar de uma fase grave de que não vou dar-me ao trabalho de falar a não ser que não teve nada a ver com essa rutura extremamente deprimente e a minha sensação de que tudo fracassava.
                  2. Lisboa rebentava com o calor, com a humidade e com a festa. Com o aroma itinerante de sardinha, que flutuava de terraço em terraço, com copos e garrafas de cerveja deitados, jazendo na calçada nervosa. Lisboa rebentava, tinha-se desertificado. Só sobrava a massa informe dos turistas. Estava-se, na realidade, em Alger.
                  3. Eu fui ter com o Carlo à cave do número quatro da Praça da Alegria, pois ele estava muito triste e queria ter o seu momento benzedrina comigo – todas as semana tínhamos um momento benzedrina em que éramos totalmente sinceros um com o outro. Mal sonhava ele que quem estava a morrer era eu, apesar da minha aparência apática, por causa da minha aparência apática. O Carlo, marxista, sempre quisera fazer amor comigo mas eu, que sou muito liberal, disse-lhe pago-te uma puta se quiseres desde que não interfiras no belo intervalo que é o que eu sou do que tu és, que é a nossa amizade, o intervalo. Eu também o amava. Faltava lá o Dean, no entanto.
                  4. Juntos inicámos o ritual, os sons do Hot Club penetravam as paredes finas e poeirentas da cave, era aquela dupla que soprava hoje à noite um disorder at the border, Dexter e Wardell[2].
                  5. Carlo falou-me de muita coisa mas eu só olhava para os olhos dele e via irrigações de sangue neuróticas, existencialistas. Uma não-alma. Dos seus olhos vi-me e eu não era louco, afinal de contas. Era só carne e osso, cheirava a cevada, o meu hálito era nojento. Ou se calhar era a benzedrina.
                  6. Para afastar as alucinações acendi um cigarro e enrosquei-me na ideia de que queria voltar às Montanhas Rochosas[3]. Ou pelo menos à Arrábida. Enfim, fazer vida de festa ou de monge, desde que se pudesse fumar.


[1] Orig.”cheguei”
[2] Ref. Dexter Gordon e Wardell Gray. .Orig. “era o master que soprava hoje à noite”
[3] Orig. Rocky Mountains

Memória Descritiva
                  Este pastiche foi realizado após a primeira leitura que fiz de On the Road. Trata-se de um registo das impressões mais fortes da leitura realizadas através do intersecionismo entre os E.U.A. dos escritores da geração beat e Lisboa no verão. Em consequência da utilização do processo pessoano teremos:
Ø  digressões entre o universo do eu-narrador deste exercício e o do narrador de On the Road e por vezes do da vida do seu autor
Ø  confusões e sobreposições, traindo qualquer possibilidade de uma espécie de continuação ou interpretação da narrativa na qual se baseia este exercício.
Baseia-se especialmente nos capítulos 6-10 da parte 1, ou seja a estadia de Sal Paradise em Denver.
                  As impressões que tentei plasmar são aquelas que concernem [por parágrafo]:
1. o incipit – as razões que levam Sal a ir e voltar constantemente;
2. o ambiente árido e vadio de Denver, transposto para Lisboa no verão;
3. as relações ambíguas e o sentido de camaradagem; o confronto do conservadorismo de Sal / Kerouac com o libertinismo dos outros membros da geração beat; a dificuldade em expressar os “reverent mad feelings” [preocupação essencialmente artística];
4. o jazz e a sua peculiaridade no imaginário americano;
5. uma aproximação ao existencialismo;
6. a noção de beatífico.
Propus-me a captar um fragmento estático entre o vir e o ir recorrentes em On the Road – “no dia em que voltei”, “queria voltar” [ir]. A repetição do verbo “voltar” sugere a ausência da estrada no seu sentido concreto. Outra ausência flagrante é a de Dean Moriarty / Neal Cassady. Esta é sobretudo um recurso para o passo 3, explicado mais abaixo.
                  Estilisticamente adotei por vezes a parataxe (discurso direto livre no passo 3 ou “apesar da minha apatia, por causa da minha apatia”), o anacoluto (idem) e a aliteração (“disorder at the border, Dexter e Wallder”).

                  Segue-se então à análise de cada parágrafo, ou passo, deste texto:    
                  No primeiro parágrafo parafraseei o incipit de On the Road numa tradução livre para situar o imaginário gerador da nova narrativa nos seus novos tempos e espaços. A alteração de certos termos (“illness”, “fase”; “wife”, “namorada”) estabelece as diferenças entre o eu-narrador e o narrador-autor; introduz também o conceito de pastiche, não inteiramente fiel.               No segundo passo descrevi Lisboa no verão. Tentei estabelecer um paralelismo entre Lisboa e a Denver de On the Road, ao criar um rasto de elementos locais por onde as personagens pudessem ter passado (o rasto da sardinha [“ice cream and apple pie”], a cerveja); ao recriar uma certa vadiagem (os copos e garrafas no chão) e aridez (o calor, a desertificação); ao repor, mesmo, certos atributos localizados na obra trabalhada (“a massa informe dos turistas” no texto escrito corresponde a uma passagem [pp 46, Penguin] da viagem a Central City: “narrow streets choke full of chichi tourists”). Saliento também o último período deste parágrafo – “Estava-se, na realidade, em Alger”. Alger aparece como a Alger d’O Estrangeiro de Camus (esta relação será estabelecida mais abaixo.). Algiers é também o nome da localidade pantanosa do Louisiana onde vivia Old Bull Lee [Borroughs] com a sua mulher, e Ginsberg, passou pelo Norte de África (como se pode inferir das suas cartas). Esta coincidência pode-nos servir de portal para o parágrafo seguinte, no qual Carlo Marx é introduzido.
                  No terceiro passo, o trio das personagens principais, “the old threesome of Carlo, Dean and Sal” [pp. 29, Penguin], é posto em causa pela referida ausência do segundo – é uma variante do episódio em que os três se reúnem na cave de Carlo e Sal assiste à discussão entre os dois acesa pela benzedrina [pp. 43-45, Penguin]. Trata-se de um processo de desdobramento de personagens. A ausência de Dean resulta na canalização do desejo de confidência e do desejo sexual em direção ao narrador autodiegético. A tensão provocada evidencia o confronto do conservadorismo de Sal / Kerouac com o resto das personagens. Este confronto de ideologias, aliás modos de vida, é, a meu ver, um dos aspetos mais importantes da obra de Kerouac e merece ser destacado porque é uma das grandes linhas de força de On the Road. Outro efeito que pretendia concretizar com a ausência de Dean era a intensificação da sua importância para o desenvolvimento da narrativa e a sua interpretação. O silêncio desta personagem dá a impressão de que, “faltando lá o Dean”, algo não se concretiza. É ainda nesse sentido que a sua ausência acentua o sentido de camaradagem, também este um tópico relevante em On the Road. A aparente contradição “apesar da minha apatia, por causa da minha apatia” justifica-se pela conotação aqui explorada da palavra, sendo que a aparência apática por um lado não transparece a ansiedade (“quem estava a morrer era eu”) e, por outro, a apatia mental é geradora de incapacidade de sentir e, consequentemente, da inércia produtiva. A respeito da incapacidade de sentir, esta é bastante evidente ao longo do romance de Kerouac ao reconhecer em Dean o aldrabão (“conman”) e ainda assim ver nele “the secret that we're all busting to find out” [parte três]. A respeito (do sentimento de) inércia produtiva, Ann Charters nota no prefácio à edição da Penguin que Kerouac, após escrever a primeira parte de On the Road (e, portanto, após ter vivido essas mesmas experiências captadas) sentia uma “emptiness and even falseness”.
                  O quarto parágrafo é onde mais se destaca a parataxe e portanto é a passagem que estilisticamente mais se identifica com o Kerouac de On the Road. Para além da sua função estilística, tem uma função sensitiva (auditiva) e de contextualização cultural. O topos do jazz é das impressões mais fortes que se pode receber delas. Recorri aos nomes citados por Kerouac na sua obra – entre outros, Dexter Gordon e Wallder Gray. Por serem tão característicos de um tempo e de um espaço (sul, Memphis), ao contrário de nomes como Miles Davis ou Charlie Parker (que a tanto mais se podem associar), seria a opção mais acertada. A passagem no fim do parágrafo que contém a aliteração com ritmos de bebop (“disorder at the border, Dexter e Wallder”) confere a musicalidade sugerida e alude à confusão até agora gerada pela fusão de horizontes (Portugal / E.U.A., Sal / eu-narrador).
                  No quinto parágrafo são feitas associações problemáticas como “irrigações de sangue […] existencialistas” ou “não-alma”. Atribuí portanto um carácter existencialista ao universo de On the Road, mais precisamente, no texto, a Carlo Marx (por extensão ao modo de vida desta geração). Esse carácter existencialista é visível, julgo, numa das citações mais simbólicas do romance de Kerouac, onde o narrador terá negado a natureza humana – “I was just somebody else, some stranger, and my whole life was a haunted life, the life of a ghost”. [pp 15-16, Penguin] Isto aproxima-nos muito do pensamento de Sartre (L’Existencialisme est un Humanisme). Negando a natureza humana põem-se várias hipóteses como conduta na vida, tendo em conta que “estamos condenados a ser livres” (ibidem). E, além disso, “a existência precede e governa a essência” (ibidem). Estas duas ideias fulcrais do existencialismo querem dizer, de um modo simplista e muito redutor, que as ações de um Homem talham o seu carácter – a liberdade e a responsabilidade do Homem são uma realidade nesta corrente filosófica. Do meu ponto de vista, é possível relacionar a história de Sal Paradise e a vida e obra de Jack Kerouac com as ideias de Camus, segundo as quais “a fraternidade é a única resposta ao absurdo” (camaradagem na obra). Tendo em conta que Camus seguiu durante muito tempo princípios católicos, pelo menos em grande parte da sua vida, e que terá o influenciado o seu pensamento filosófico, podemos estabelecer a ponte com a noção de beatífico.
                  Esta é a noção que encontramos no sexto parágrafo, alicerce e finalidade da experiência beat. Cristaliza-se na escolha toponímica da Arrábida – serra dos monges, local de oração (al-rabit). Finalmente, o verdadeiro dilema de Kerouac entre a vida com os amigos / boémia / móvel e a vida familiar / religiosa / estável, no fim deste exercício de pastiche, encontra uma só condição: a condição de se poder fumar.

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