Escritor
e poeta norte-americano, Raymond Carver escreve um tocante conto intitulado “A
Small, Good Thing”. Incluído na antologia de contos Cathedral, publicado
em 1983, este é um conto que nos relata a história da família Weiss que espera
e desespera pelo seu filho Scotty, que se encontra no hospital depois de ter
sido atropelado no dia do seu aniversário, enquanto ia a caminho da escola.
O
conto começa com a apresentação de uma das protagonistas do conto, Ann Weiss,
que se dirige a uma pastelaria para encomendar um bolo de aniversário para o
seu filho Scotty, que faria 8 anos na segunda-feira seguinte. Este é uma
informação importante relativamente ao espaço da acção, uma vez que se verifica
que a história contém uma estrutura circular, ou seja, a acção irá começar e
terminar na pastelaria, passando pelo hospital e com algumas ocasionais cenas
na casa dos Weiss. No que diz respeito ao narrador, o leitor facilmente
constata que este é omnisciente e heterodiegético, pois usa a terceira pessoa
do singular e demonstra um conhecimento total das personagens.
Durante este conto ocorrem transformações essenciais nas
personagens. Antes do acidente de Scotty, tanto Ann como Howard viviam uma vida
virtualmente perfeita. Enquanto guia até casa, Howard descreve a sua vida até
ao momento como calma, preenchida e sem grandes percalços (“until now his
life had gone smoothly and to his satisfaction (…). He was happy and, so far, lucky – he knew that. (…) So far, he had kept
away from any real harm, from those forces he knew existed and that could
cripple or bring down a man” – p. 130). Também
Ann, no início do conto, não consegue compreender a razão pela qual o
pasteleiro não apresenta qualquer interesse em empatizar com ela, porque na sua
vida o foco central terá sido sempre ela própria, o marido e mais tarde o
filho. Portanto, este desinteresse e
indiferença por parte do pasteleiro nela e na celebração do filho deixa-a
desconfortável: “it seemed to her that everyone (...) must have children
who’d gone through this special time of cakes and birthday parties” (p. 130).
Contudo, há também outros momentos
que mostram distanciamento e isolamento entre personagens. Novamente, temos o
pasteleiro que, no início da história, não estabelece contacto visual com Ann,
limitando-se a deixá-la falar, demonstrando assim ao leitor uma incapacidade de
empatizar com ela. Outro momento é o do condutor que atropela Scotty e abranda
para verificar se realmente foi um choque fatal. Em vez de levar a criança
imediatamente ao hospital, acaba por fugir para não ser incriminado. Também Dr.
Francis mostra ao leitor um enorme distanciamento dos pais de Scotty, não só um
distanciamento no aspecto físico, mas também no comportamento. Dr. Francis nunca
mantém contacto físico com os pais, apenas apertando a mão de Howard de vez em
quando, e confortando Ann verbalmente. Existe igualmente outro momento
ilustrativo desse distanciamento: enquanto transportam Scotty para um exame
médico, dois dos enfermeiros conversam entre si numa língua estranha aos pais,
tornando-os alheios à situação presente, como se no mesmo elevador se
apresentassem dois mundos diferentes.
No
entanto, após o acidente inesperado de Scotty, os personagens “renascem”: Ann
apercebe-se que não está só na sua dor, pois Howard partilha exactamente a mesma
experiência que ela. (“For the first time, she felt
like they were together in it, this trouble. She realized with a start that,
until now, it had only been happening to her and Scotty. She hadn’t let Howard
into it, though he was there and needed all along” - p. 315). De igual
forma, ao partilhar a sua história com a família de Franklin, e ouvir a
história de Franklin em retorno, Ann sente-se ligada à sua dor e preocupação, e
sente-se mais aliviada neste processo, embora ambas as famílias não tenham nada
em comum, tirando a partilha de uma situação de dor, uma vez que são claramente
de classes sociais distintas. Também Dr. Francis vai sentir-se igualmente
responsável pela falha médica que leva à morte de Scotty, e quebra o seu
comportamento habitual, abraçando Ann para a confortar. Finalmente, o grande
momento de redenção das personagens está na acção final de partilha do pão
feito pelo pasteleiro e pela família, que é tida como uma comunhão entre as
duas partes, uma experiência sensorial que evoca a Eucaristia e uma alusão à
“universal grace” que todos os seres humanos serão capazes de atingir. Apesar
de não compreender a sua dor na totalidade, por não ter tido filhos e não ter
experienciado a preocupação natural dos pais, o pasteleiro compreende a sua
própria dor e tenta nivelar a situação com a sua própria experiência.
Em
conclusão, este conto de Raymond Carver captura a angústia, o medo, a tristeza
e a dor de dois pais perante uma situação de vida ou morte incerta de um filho,
dependentes do conhecimento dos estranhos que os rodeiam, dos médicos que os
acompanham, e da própria situação que foge ao seu controlo. Captura igualmente
a solidão do pasteleiro, que, desprovido de vida familiar, trabalha todos os
dias para a sua subsistência, observando a felicidade alheia sem nunca nela
tomar parte. Assim, podemos concluir que todos nós estamos ligados uns aos
outros, pois existe sempre alguém com quem nos conseguimos identificar, seja
pelas nossas emoções, ou pelas nossas experiências. E, mesmo que seja
impossível conhecer alguém verdadeiramente, são as nossas tentativas de sermos
bons e compreensivos com os outros que tornam as nossas vidas numa “small, good
thing”.
Vídeo do filme de Robert Altman, Shortcuts